O acidente

Falei neste livro, mas quero voltar ao assunto. Em 22 de março de 1972, tinha eu 16 anos, sofri um acidente brutal. A explosão de um recipiente com 20 litros de álcool me atingiu em cheio. Era por volta de duas horas da tarde quando isso aconteceu. Lembro que saí pela rua em que morávamos absolutamente em chamas. Eu era uma chama humana naquele instante.

Defronte a nossa casa, morava, com os pais, um rapaz chamado Ademar Holanda. Estava à janela, a exemplo do que costumava fazer todas as tardes. Era um rapaz forte, vigoroso e tinha a fama de namorador incorrigível, o que lhe custava alguns comentários desabonadores. Pois bem, vendo-me em chamas, Ademar correu ao meu encontro e, sabiamente, me envolveu com uma rede, o que fez apagar o fogo de imediato. Veio como um enviado de Deus, para me salvar a vida.

Os dois ou três minutos anteriores, no entanto, foram bastante para produzir queimaduras de segundo e terceiro graus por todo o corpo. Era uma imagem apavorante, e as dores insuportáveis.

Durante dois meses, pouco mais, pouco menos, fiquei hospitalizado. Chefiava a equipe dos que cuidavam de mim o médico Alberico Mendonça, a quem devo muito pelo carinho e pelo devotamento com que acompanhou a minha lenta e dolorosa recuperação.

Durante os curativos, feitos todas as manhãs, mamãe ia até uma praça nas imediações do hospital para não ouvir os meus gritos de dor. Rezava, rezava, enquanto o filho, a poucos metros dali, passava os quarenta, cinqüenta minutos mais cruéis de sua vida, não raro desmaiando por não suportar tanta dor.

O tratamento, naquela época, era precário, quero crer, e os procedimentos agressivos. Cada resto de pele era cortado com uma tesoura e, em carne viva, as feridas eram limpas com uma espátula de metal, levemente arrastada contra o corpo para retirar o tecido necrosado. Um horror!

Durante os intervalos de aula, as garotas do colégio São José, um colégio exclusivo para mulheres, iam me visitar. À época, eu era um rapaz bonito e fazia algum sucesso com o mulherio, razão por que, ao invés de ficar alegre com a presença daquelas beldades, sentia-me tremendamente incomodado. Como o corpo estivesse por inteiro queimado, vestiam-me uma única peça, que lembrava uma calcinha com um laço num dos lados, o que facilitava a sua troca duas ou três vezes por dia. Com o passar do tempo, diziam os amigos, aquela peça íntima parecia ter vida a cada visita de uma daquelas moças tão bonitas. Pura maldade.

Depois, viriam as muitas cirurgias plásticas. Embora nunca me tenham as cicatrizes causado qualquer constrangimento, posto que sempre lidei bem com isso, o acidente em si, o estar por dias a fio entre a vida e a morte,  as lembranças daqueles momentos de dor física e psicológica, foram coisas marcantes na minha vida. Acho que o fato me fez uma pessoa extremamente sensível, me fez compreender melhor o significado da vida e quão delicada é a fronteira que a separa da morte. É como se, dali em diante, carregasse comigo a consciência, a perfeita compreensão do que é essencial na vida de cada um. Deus me dera o fundamental, o mais importante, o resto viria como lucro. E, generoso e benevolente, como Deus me tem dado tanto…